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John Zorn

A edição de 2018 do Jazz em Agosto foi a terceira dedicada a um músico: John Zorn, depois de Max Roach em 1995, e o mesmo John Zorn, em 2013 (o histórico Max Roach, quatro concertos: quarteto, duplo quarteto, drum solo e recriação do colectivo de percussões Mboum; John Zorn, 2013, três concertos: The Dreamers, Essential Cinema e Electric Masada e Zorn 2018, programação quase integral. Houve outras homenagens de menor dimensão: Ornette Coleman, entre outros).

De certa forma poderemos dizer que John Zorn consubstancia em si mesmo a filosofia que está presente no Jazz em Agosto: «a homenagem do Jazz em Agosto a John Zorn surge como natural. Centenas (!) de discos, performances onde o dramático se combina com a música e a irreverência ganha foros, fazem de John Zorn uma verdadeira estrela pop», escrevia eu em 2013.

Figura multifacetada, John Zorn é um dos mais ilustres representantes da downtown nova-iorquina, no que ela possui de irreverência e apropriação de todos os materiais, na quebra de tabus, na provocação e de certa forma na descendência da pop art e do underground norte-americano. Nada é proibido para Zorn, todos os géneros musicais são autorizados e, se a fusão ou os cruzamentos de géneros, estilos, formas musicais ou artísticas não foram propriamente inovação de Zorn, esta é por excelência a sua marca. Logo em 1985, em The Big Gundown, inspirado na música de Ennio Morricone  (1985), ou nos primeiros Naked City (1988), Zorn cruzava com humor e inspiração pop e free Jazz, rock e hard bop, Ornette Coleman, r&b ou country, surf e world, sobre temas pop, bandas sonoras e tudo o que lhe vinha à mão.  

Ao longo de mais de trinta e cinco anos de actividade, ele tocou e compôs Jazz, rock, ambient, caldeirou punk com free jazz, grunge com folk, pop com clássica, nunca parou. Mais de 400 discos editados, muitas centenas de composições escritas. Frenético e inquieto, muito do que compôs e editou foi tocado por outros músicos, uma corte gravitante que inclui ou incluiu Arto Lindsay, Bill Frisell, John Medeski, Dave Douglas, Joey Baron, Marc Ribot, Jamie Saft, Uri Caine, Bobby Previte, Fred Frith, Craig Taborn ou o Kronos Quartet… Mas também músicos punk, heavy metal ou de outras origens.  

Nada é proibido para Zorn, como a irreverência de que se reivindica anda de mãos dadas com a volubilidade. Zorn mantém desde os anos 80 vários projectos em simultâneo, mudando de direcção a toda a hora, recuperando temas e ideias. 

Se ao longo dos anos ele realizou alguns discos interessantes e com alguma unidade (em especial os discos que continham muito de Jazz, até pelos músicos que com ele tocavam), ele tornou-se o símbolo do fátuo que é muito próprio da pop moderna. Ele não procura a intemporalidade numa obra, não procura a consagração do eterno. Os clássicos, os Mozart e os Beethoven, escreviam sinfonias, e o próprio Jazz compunha obras com pretensões duradouras, buscando formas definitivas. Duke Ellington, Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis escreviam e compunham para a posteridade. Em John Zorn tudo é efémero. As ideias surgem e são concretizadas naquele momento, para desaparecer no momento seguinte. É a filosofia pop da música de discoteca, do laptop e do dj, que nasce e morre no momento. Podemos encontrar momentos em Zorn, mas quando pensamos que em 2004 ele se propôs compor mais de cem temas num mês, temos que entender que muitas delas não podem passar de quatro ou cinco acordes que, com alguma genialidade, enforma com a convocação dos músicos adequados. Inúmeras das pequenas peças que Zorn levou à Gulbenkian, e para cuja interpretação convocou Kris Davis, John Medeski, Craig Taborn, Brian Marsella, Dave Douglas, Marc Ribot ou Mary Halverson…, dificilmente ganhariam alguma relevância se fossem tocadas de forma mais linear. (Mas com justiça se dirá que muito do que é o Jazz é reside na capacidade de pegar em qualquer coisa, entre peças vulgares e meia dúzia de acordes, e fazer deles grande música… Ah: My Favorite Things!)

Esta vanidade, esta recusa da intemporalidade, que se observa no excesso (mais de um disco por mês e alguns milhares de composições ao longo dos seus trinta e cinco anos de actividade), corresponde ao fluir de ideias que é o produto da sua voracidade e da canibalização de géneros e ideias alheias, e é essa vertigem que o impede de se construir numa obra que resulte intemporal. Quase sempre encontramos nesgas de boas ideias, que passam também para outros discos ou outros concertos, mas nenhuma obra eterna; nem é esse afinal o seu objectivo. O frenesim, a voragem e o efémero são verdadeiramente o material constituinte de um dos pilares mestres da personalidade de Zorn.

John Zorn não é verdadeiramente um músico de Jazz, mesmo se ele utiliza o Jazz com alguma desenvoltura, mas também como inúmeros outros materiais. Como instrumentista, no saxofone, ele é um ayleriano muito veloz, mas não especialmente criativo, e é menos interessante ainda noutros instrumentos, órgão, teclados ou percussão.

Se não se poderá dizer que Zorn tenha alguma vez inventado alguma coisa, ele revelou-se como o mestre da colagem e da fusão e manipulação de materiais, estabelecendo a irrevogabilidade da globalização que outros tinham enunciado, na sua forma mais acabada, imoderado, com humor e vitríolo, em definitivo, sem limites. Ou de outra forma: a transgressão como linguagem (uma vez mais herdeiro de outros, como Frank Zappa).

Há muito de encenação (não musical) na obra de Zorn, que empresta o cunho de «qualidade» e «modernidade» até a formas pouco interessantes. O oceano de referências que evoca, a capacidade de fundir elementos consistentemente numa forma que diríamos próxima do conceito de «globalização», também o excesso e o efémero, e a teatralidade, autorizam-lhe a classificação de modernidade tão querida dos media pop. Os primeiros discos dos Naked City são exemplos disso mesmo, na profusão de referências genialmente manipuladas, e dessa manipulação contruída em discurso. O impacto dos Naked City foi determinante para a popularidade de Zorn, um capital de simpatia e aceitação na imprensa, muito em especial na imprensa pop, que foi também ela ofuscada pela aura de irreverência que os Naked City destilavam.

Essa teatralidade e a manipulação da imprensa, que evidenciam que a música não é apenas música, mas também a cultura que a envolve, ganha pertinência em Zorn: na modernidade de que se reivindica, e que está no seu ADN; mas exige da sua audição, da crítica, naturalmente, em particular, a capacidade de destrinça (entre o musical e o supérfluo). O deslumbramento de alguns jornalistas (e público) assume facetas patéticas: há não muito alguém assinalava a postura irreverente de Zorn numa entrevista, sentado no chão do escritório. Bom, John Lennon foi entrevistado na cama e Frank Zappa sentado na sanita…; muito do que faz é puro espectáculo.

Tenho, talvez também por esse motivo, uma relação conflituosa com a sua música, sobre a verdadeira modernidade da sua obra, já que muito do que faz já foi realmente feito, mas da forma como a apresenta ela surge como novidade. As suas obras para cinema, por exemplo, são de alguma vulgaridade, mas, como um prestigiador (que chama a atenção para um objecto para esconder um gesto), Zorn foi capaz de se apresentar como um precursor. E no entanto, no género, na música para cinema ou na que realizou, ou nessoutra mais próxima até da «música de elevador», outros foram bem mais sucedidos: Miles Davis, Morricone, Angelo Badalamenti, Lalo Shiffrin, Henry Mancini, Carla Bley, Bill Frisell, Dave Brubeck, Duke Ellington, Leonard Bernstein, Nino Rota …; o próprio género parece ter surgido às suas mãos… Sobre isso mesmo escrevi aquando do projecto que apresentou na Gulbenkian em 2013, «Essential Cinema».

De entre os géneros musicais mais presentes em Zorn (para além do Jazz), o rock é recorrente, e em especial as suas derivações mais «radicais», próximas ou descendentes do metal ou do punk. Desde os primeiros discos de Zorn que essas manifestações mais noisy estão presentes, mas numa fase inicial quase apenas como contrapontos ou como apontamentos humorísticos. Mas ora elas, essas formas, são muito pobres, musicalmente. Pareciam fazer sentido, nessa primeira fase, mas o Zorn afunilou por diversas vezes por esse caminho. O motivo que Frisell apresenta para a saída dos Naked City foi precisamente o cansaço desse radicalismo que se esvaía. Ora este «radicalismo», esse «modernismo» (parece que o metal e o noise são coisas modernas, ao que me disseram, e radicais, e muito jovens…), regressa recorrentemente a Zorn. Quase nunca na sua forma mais pura, mas cruzada com outras formas, como é seu apanágio. Zorn explorou esses cruzamentos nos Painkiller, e a eles regressa amiúde. A convocação de bateristas de metal é recorrente (pedais duplos, baquetas de carbono, muita velocidade e muito ruído: alguns bateristas pensam que ser bom baterista é ser muito rápido e barulhento, mas a bateria é muito mais do que isso: um conjunto de instrumentos constituídos num, tocados por quatro membros de forma independente e coordenada), escandalosamente (a provocação de que Zorn gosta) reunidos com músicos de Jazz ou outras áreas.

Esta irreverência na utilização de materiais diversos, no caldeirar de formas musicais adversas, resulta por vezes interessante; mas a insistência no ruído, no lounge, nas electrónicas espúrias, nos djs e nos ruídos aleatórios, enfim na provocação como forma, torna-se também, com frequência, aborrecida.

Quando se olha a obra de John Zorn é também o excesso que ressalta. Ele abordou todos os géneros e baralhou-os como num jogo de cartas, mas, se ele de facto não inventou nada, ele tocou-os todos como ninguém antes tinha feito. Entre o Jazz, a música de câmara, o rock e o klezmer, you name it, oferecendo autoridade até a géneros menores como o lounge ou o punk, apenas porque ele o fez. E uma vez mais exige-se do crítico a recusa do deslumbramento, e análise fria da música. Mesmo tendo em conta o que atrás disse, que a música não é apenas música, não é apenas a associação de notas.

Mesmo do que Zorn tocou em Portugal desde 1990, e do se terá ouvido na Gulbenkian (no Jazz em Agosto de 2018), poderá observar-se o menor interesse de algumas peças e alguns dos projectos. Em especial, e não por acaso, nas abordagens incomptas do punk ou do metal, mas também quando se aproximou do free-jazz. O concerto dos Painkiller em Xabregas (1993), o duo com o gritador Yamatsuka Eye (1995) no São Luiz, o trio Zorn/ Mori/ Patton na Voz do Operário (1996), o duo Zorn/ Frith no Jazz em Agosto (2008) foram uma nulidade musical, os três concertos da homenagem a Zorn de 2013 oscilaram entre a vulgaridade (Essential Cinema) e o bom (Electric Masada); e os concertos dos Naked City do Forum Picoas (1990) e Aula Magna (1991), e os Masada no Convento do Beato (1997) foram grandes momentos de música.

Ninguém pode ter ouvido tudo o que John Zorn tocou e editou, e que está em grande medida editado na sua Tzadik. Nela tocam muitos dos músicos da sua galáxia privilegiada, e que se consagra também como um dos instrumentos motivadores de um género que não tem (não pode) possuir uma definição que ele mesmo, Tzadik, ou Zorn, onde as fronteiras não existem.

Tzadik is dedicated to releasing the best in avant garde and experimental music, presenting a worlwide community of contemporary musician-composers who find it difficult or impossible to release their music through more conventional channels.
Tzadik believes of all in the integrity of its artists.
What you hear on Tzadik is the artists’ vision undiluted.

Vanguarda e experimentalismo são conceitos deslizantes, e a Tzadik será mesmo o seu paradigma. Não existe vanguarda sem retaguarda, como a Tzadik demonstra na apropriação de formas adversas, e se alguma novidade ela consagra é o fim das fronteiras musicais que outros tinham anunciado. Como instrumento privilegiado de John Zorn, ela tanto revela a vacuidade do experimentalismo que se tem como objectivo a si mesmo, como nos oferece a integridade musical e criatividade de músicos tão diferentes quanto Craig Taborn, Dave Douglas, Mary Halvorson, Pat Metheny ou Bill Frisell. A vanguarda e a experiência nem sempre estiveram presentes na Tzadik, mas nela estão registadas grandes obras, e nela tocaram grandes músicos, e não é possível falar da música editada nas últimas décadas sem a referir.

Utilizei dezenas de adjectivos para falar de Zorn e à sua música coloquei muitas reservas – eu diria que fundamentalmente lhe coloquei reservas ao que ele possui de para-musical - mesmo se lhe reconheço o valor da «irrevogabilidade da globalização» que ele ajudou a estabelecer, e que se constituiu afinal como o fundamento da modernidade que protagoniza.

Aprecio-lhe a inquietude, a procura, o desconforto, a personalidade motivadora, mas são algumas destas características da sua personalidade que por vezes o atraiçoam (que atraiçoam a sua música e lhe empecem a perenidade - sendo verdade que a não procura), estimuladas pela sua hiperactividade. O para-musical e o que é apenas mediático não me interessa. A modernidade (que busca a todo o custo) deve de ser debatida.

Sobre o que se terá passado na Gulbenkian em 2018, entre o que os discos prenunciam e o que me foi dito, os grandes momentos terão sido protagonizados pelo Mary Halvorson Quartet, os Masada, Kris Davis Quartet, Craig Taborn e Julian Lage & Gyan Riley.

Sobre se John Zorn merecia a homenagem do Jazz em Agosto, eu diria que sim. Muito em especial pela diversidade da sua obra (poucos músicos poderiam apresentar uma dúzia de projectos tão diversos, mesmo com as reservas que coloco a alguns deles) e pelo papel que ele ocupa na modernidade, na forma como eu a concebo nele e como escrevi. Claro que eu preferia músicos de Jazz. Mas isso sou eu.

 

 

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